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desde que me mudei para lisboa, em setembro de dois mil e vinte e dois, as idas a braga têm ficado cada vez menos frequentes. por isso mesmo, sempre que lá vou tento aproveitar ao máximo para rever as pessoas que mais importam. e talvez por serem poucas as vezes que visito a minha terra natal, sempre que o faço nasce em mim uma nostalgia que não sei bem explicar e me deixa com um vazio qualquer no peito. desta última vez, fui (com ele) a propósito do congresso de comunicação de ciência, e houve diversos elementos ao longo dos dias que, ora me transportavam ao passado, ora me causavam esse tal vazio.
ficámos em casa dos pais dele e reparei que têm numa das suas casas de banho um daqueles relógios analógicos pequeníssimos, de colocar junto de uma mesa de cabeceira, mas cujo tiquetaque é bastante audível. num silêncio qualquer, é, aliás, tudo o que se escuta. e foi num desses silêncios em que o tiquetaque daquele relógio me levou numa viagem mental à sala de estar da casa antiga da minha avó, casa onde passei grande parte da minha infância. lembrei-me das tardes que passava naquela sala, no silêncio dos anos 90 sem tecnologia para ocupar o pensamento, e onde se podia escutar o relógio de parede com o seu tiquetaque pesado (curiosamente, há uns meses passei num restaurante qualquer em lisboa onde tinha um relógio exatamente igual). era aquela sala que a minha avó só usava em dias de festa, como a páscoa, ou alguns aniversários. no dia-a-dia, era onde fazia os trabalhos de casa minutos antes de a minha mãe chegar do trabalho, porque tinha adiado essa tarefa durante toda a tarde; mas também o local para onde fugia após o almoço, dizendo que ia apenas à casa de banho, mas por lá ficava, porque não queria terminar de comer; e onde brincava com os meus primos mais velhos e via os meus primos mais novos crescerem nos braços carinhosos da minha tia, que nos foi cuidando a todos, qual ama seca que o fazia a troco de (quase) nada. e estas imagens não são hoje tão nítidas quanto aquele momento em que o escutei aquele tiquetaque que magicamente me fez viajar no tempo.
num dos dias, visitei os meus pais e aproveitar para tirar o pó ao piano, que continua por afinar, depois de tantos anos. e quando o toquei, senti saudades da entrega com que cheguei a tocar, e a forma como aquilo acabava por ser, por vezes, terapêutico para mim. e por isso, as melodias que tendo a tocar quando lá vou são das mais tristes que compus. este episódio específico, para além do vazio que deixou cá dentro, foi particular por me ter lembrado de uma música que não tocava há anos e foi sendo recuperada à medida que a tocava. como se uma memória procedimental estivesse a ser estimulada e fosse sendo revelada aos poucos. antes de sair, acabei por gravar uma nova melodia para ir ouvindo cá em lisboa, como forma de ir matando algumas saudades.
e se estes exemplos foram importantes, o que mais me marcou fez parte do programa social/cultural do próprio congresso a que fui. o grupo de cantares de mulheres do minho atuou numa das pausas do primeiro dia do congresso. e embora a acústica fosse péssima e a falta de respeito da audiência notória, achei as cantigas super curiosas e consegui gravar uma, para me ir lembrando. é que a forma como as mulheres cantavam era exatamente como antigamente se cantava. um esforço bem conseguido para recuperar uma tradição perdida e que me lembra, indubitavelmente, a minha avó e a minha tia avó. lembra-me as idas à capela do senhor dos milagres, na minha freguesia, quando todas as mulheres cantavam a música sacra como sabiam, com as vozes estridentes que, desafinadas se isoladas, se uniam num harmonioso cantar que eu sempre apreciei. em criança não sabia explicar o porquê de gostar daquilo. talvez por ser a parte menos aborrecida dos rituais católicos? a verdade é que escutar aquele grupo de mulheres me comoveu não só pelas melodias que, estridentes mas harmoniosas, me transportaram para a minha infância, mas também pelas letras, que transmitem uma realidade já quase esquecida, mas que é ainda recente - na história do país, e na minha memória. e se as letras têm um jeito mais popular, algumas das suas rimas conseguem ser delicadamente geniais.
e se falo de música sacra cantada na minha freguesia natal e de velhas tradições que se vão perdendo, consegui visitar a sua festa popular com a desculpa de comer uma fartura. o ambiente em volta parecia simultaneamente ter estagnado no passado e evoluído para algo completamente diferente, sem a magia de outrora. o que ficou igual? o palco e o tipo de música, o senhor a apresentar no altifalante o programa das festas, o bar com comes e bebes e, claro, a rulote de farturas e churros. mas também o ponto de encontro de jovens a entrar na adolescência, que começam a sair fora dos olhares dos pais e se juntam para ir descobrindo uma paixoneta qualquer. onde eu também ia saindo com os meus amigos e amigas nessa altura, numa ambiente para lá dos muros da escola. e as diferenças? o ambiente geral, uma sensação de que as tradições não significam o que outrora significavam - momentos de união entre a comunidade para um bem qualquer comum. agora tudo pareceu demasiado... não sei bem explicar e, à falta de palavra melhor: superficial. por isso mesmo, também esta breve visita para comer uma fartura - essa ainda com o sabor de outrora - deixou um vazio qualquer que só posso classificar como nostalgia.
talvez este saudoso sentimento seja estimulado pela cultura portuguesa e faça já parte de nós, de mim. a verdade é que sempre fui um pouco saudosista e temo a evolução desta minha forma de ver a realidade. com o passar do tempo, aprenderei a lidar melhor com o passado, e conseguirei deixá-lo partir; ou ficarei preso à nostalgia do que já passou, com este viés de que tudo era melhor do que provalmente foi?