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da nudez e da sensatez

Pedro Simão Mendes, em 09.03.24

   tenho vindo a tomar notas no meu telemóvel quando me lembro de algum tópico que quero desenvolver em texto para explorar aqui no blogue. há uns meses - já não me lembro bem porquê - pensei escrever sobre nudez. este texto é sobre isso (e sobre sensatez).

   as minhas opiniões são, em muitos assuntos, ambivalentes. tenho tido sempre esta dificuldade em posicionar-me num extremo ou noutro porque faço o exercício racional de tentar (e muitas vezes consigo) ver dois pontos de vista opostos. o objetivo seria chegar a um ponto intermédio de compreensão/opinião mais sensata e comedida. nem sempre consigo, contudo, tomar uma posição definitiva. mas acho que isso é mais interessante do que optar por uma posição rígida e ser totalmente inflexível.

   relativamente à nudez, a minha ambivalência surge pela óbvia sexualização do corpo. [antes de avançar mais, deixar aqui claro que falo da nudez consentida de alguém adulto.] por exemplo, é totalmente natural sexualizarmos os corpos porque, antes de qualquer outra coisa, somos mamíferos com uma "ordem" genética que orienta o nosso comportamento sexual. e embora isto seja natural, a nudez não é sempre sexualizada. a nudez pode ser só nudez, ou, muitas vezes, arte. gosto por vezes de pensar que um corpo é só um corpo. todos nascemos com o nosso, e a genética (e mais uma ou outra influência do ambiente e da nossa experiência de vida) lá se encarrega de decidir como é que ele se desenvolve e se apresenta. e se não há nada mais natural do que o nosso próprio corpo e todas as funções biológicas a ele associadas, é verdade que socialmente lhe é (ou foi) atribuído um valor específico. é-me, portanto, quase impossível dissociar os valores que me foram incutidos através da cultura portuguesa de uma cidade e educação muito católica, ao encarar o corpo nu - objeto da sexualização humana - como algo pecaminoso. e aí, um corpo já não é bem só um corpo. mas tento muitas vezes fazer esse exercício - colocar uma lente isenta de valores e interpretações, sobretudo no que se refere à moral. talvez a minha experiência enquanto investigador (quase quero dizer cientista) me faça tentar ser o mais objetivo possível e me permita fazer este exercício.

   mas a questão de um corpo ser só um corpo entra em conflito com, por exemplo, a minha ida ao ginásio. é que não é por ser capaz de conceber que um corpo é apenas um corpo que quero propriamente ver os corpos das outras pessoas. nem acho que as pessoas têm de estar dispostas a ver o meu corpo só porque eu posso querer estar nu a secar o cabelo, ou a pentear-me. ainda bem que há regras sociais e se criou o conceito de partes íntimas. claro que, por vezes, fico confuso com os dramas de diferenciação entre roupa interior e biquíni/calções de banho - como é que um é aceitável e outro não (sim, eu sei que tem a ver com o contexto). por outro lado, também me parece razoável - mas ambivalente para mim - quando pessoas me dizem que vão a praias de nudismo com os seus filhos. estou certo de que para os olhos de uma criança, um corpo é só um corpo, e por um lado acho isso totalmente natural, já que a criança ainda não se desenvolveu a conceptualização da sexualidade. aliás, esta prática poderá promover a aceitação e perceção da diversidade de corpos de todos os tamanhos e feitios. pode ser uma atividade educativa. contudo, por outro lado, é importante criar os limites e a adequação do comportamento às regras sociais. e é nestas questões que me divido.

   no ano passado experimentei fazer nudismo pela primeira vez. e fez maravilhas à minha auto-estima. sempre tive alguns complexos, mas consegui desenvolver o à-vontade para estar numa praia de nudismo sem me preocupar com o que outras pessoas pudessem pensar. até porque muito provavelmente ninguém quer saber. mas também foi importante perceber a diversidade de corpos que existem naturalmente num espaço concebido para aquele efeito. percebi que este é o meu corpo, e é o que tenho. às vezes sinto que, se promovêssemos mais a ideia da aceitação corporal em vez de procurarmos um ideal escultural perfeito, o mundo seria um lugar um pouco mais feliz - mas isso é outra história.

   pela associação da nudez com a sexualização do corpo, que considero totalmente natural, é muito comum associá-la automaticamente à pornografia. mas eu acho que a nudez não é pornografia. pode sê-lo, atenção, mas não é. a este propósito, partilho convosco o movimento don't delete art, que chama a atenção para os danos causados quando a arte é censurada em ambientes online. desde a escultura, à pintura e à fotografia, os algoritmos das redes sociais foram treinados a identificar e censurar o que pode ser considerado nudez, que é encarado automaticamente como conteúdo sexual. o problema parece ter duas dimensões: o facto de as próprias pessoas não serem sensatas o suficiente para distinguir o que é nudez do que é pornografia; e a forma como os algoritmos são treinados, que não têm em consideração informação contextual. aliás, muitas vezes os algoritmos aceitam e ignoram conteúdos que são claramente de cariz sexual mas censuram outros são um simples retrato de um corpo. isto lembra-me uma velha questão dos cinema e televisão americanos, que tem a ver com a censura dos mamilos, até na amamentação (neste caso até em locais públicos), que é uma das coisas comuns entre os mamíferos (dos quais, como já disse, nós fazemos parte). ao mesmo tempo, é normalizada a violência, e a presença e uso de todo o tipo de armas. mas, deus nos livre salve e guarde, não se mostre um mamilo!

   visitem o site e redes sociais desse movimento e percebam a quantidade de queixas de censura reais na arte que, efetivamente, parece estar a condicionar o espaço para criações mais provocadoras. recentemente parece haver um ou outro argumento a dizer que as minorias são mais frequentemente alvo deste tipo de censura. o que, na minha opinião, não deixa de ser irónico. isto porque sinto que houve na última década uma extra-sensibilização da sociedade, muito impulsionada pelos movimentos woke, e que talvez envolva uma sobreproteção das gerações mais novas (e portanto, futuras). de repente, tudo é ofensivo. uma palavra, uma pintura de um mamilo, a foto de um rabo. mas se é um rabo de uma minoria, agora temos um problema.

   sinto que também no espaço digital foi isto que aconteceu. se tudo é ofensivo, tudo é reportado. está-se a treinar um algoritmo para polarizar as coisas. e não é também isto que causa o crescimento da extrema-direita? não será uma espécie de ação-reação? como se um pólo estivesse a reagir ao pólo contrário, alimentando um mundo digital de polarização e falta de contextualização.

   houve há umas semanas uma polémica sobre a inteligência artificial gemini, o gerador de imagens da google, que foi treinada para evitar o viés de criar pessoas brancas, de forma a aumentar a diversidade e representatividade. o caricato é que, a certa altura, gerou, entre outros exemplos, soldados alemães da segunda-guerra mundial (nazis) com origem asiática. um claro exemplo de como é importante contextualizar para compreender a situação, sobretudo no digital. as ferramentas digitais (ainda) não são capaz de o fazer como os humanos. é uma questão, no fundo, de sensatez na análise da informação. sim, no fundo, e tal como saber se a nudez é ou não é pornografia, acaba por ser uma questão de sensatez humana. o problema é que tem havido falta de sensatez no mundo.

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às 17:26


1 comentário

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De Alves Mendes Carlos Alberto a 21.03.2024 às 20:09


Um excelente texto!

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